balkanização da internet

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A Fragmentação Digital na Era da Geopolítica Tecnológica.

O Novo Mapa da Geopolítica Tecnológica Global​

A fragmentação digital — a divisão da internet e das tecnologias digitais em blocos geopolíticos distintos — tornou-se uma realidade incontornável no cenário global. Impulsionada por disputas comerciais, guerras e políticas de segurança nacional, essa fragmentação está redefinindo o fluxo de dados, cadeias de suprimentos e a governança digital.

Em um mundo cada vez mais impactado por questões geopolíticas, a fragmentação digital se tornou uma realidade incontestável para usuários, empresas e, principalmente, governos. A internet, que antes era vista como uma rede global e aberta, está se transformando em um conjunto de redes nacionais, com acessos restritos e regulados por interesses políticos e econômicos. A Experiência Digital agora é cada vez mais moldada por barreiras geopolíticas e regulatórias.

O Que é Fragmentação Digital?

A fragmentação digital refere-se à crescente divisão da infraestrutura digital global em sistemas separados e, muitas vezes, incompatíveis. Isso ocorre devido a políticas nacionais que impõem restrições ao fluxo de dados, exigências de localização de dados e padrões técnicos divergentes. Esse fenômeno resulta em uma internet menos interconectada e mais segmentada por fronteiras políticas e econômicas.

O que funciona no Brasil pode ser inviável nos Estados Unidos ou na Ásia. Enquanto determinadas regulamentações se tornam essenciais na Europa, elas podem ser irrelevantes para a América do norte ou sul. A ideia original de uma internet global e universal está se fragmentando diante dos nossos olhos, dando lugar a blocos digitais distintos. Esse fenômeno, conhecido como “splinternet”, marca um cenário onde cada país define sua própria fronteira digital, criando um mosaico de redes nacionais isoladas, regidas por políticas locais e, muitas vezes, incompatíveis entre si.

Conceito e Características da Fragmentação Digital

A fragmentação digital, também chamada de “balkanização da internet”, ocorre quando países ou blocos econômicos impõem restrições à circulação de dados, impõem padrões técnicos distintos e bloqueiam acesso a tecnologias ou plataformas estrangeiras (DeNardis, 2014). As manifestações típicas incluem:

  1. Divergência de padrões de cibersegurança e privacidade;
  2. Leis de localização de dados (data localization);
  3. Barreiras a plataformas e serviços estrangeiros;
  4. Censura estatal e firewalls nacionais.

Fatores Geopolíticos Recentes

Impacto da Guerra Comercial EUA-China

A guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, intensificada durante a administração Trump, acelerou a fragmentação digital. Tarifas de até 145% sobre produtos chineses e restrições a empresas como Huawei e TikTok exemplificam essa tendência. Os EUA também alegam riscos à soberania nacional no caso da Huawei e ZTE com a solução 5G dessas empresas. No caso do TikTok, o banimento, é um exemplo claro de “decouplind digital” ou desacoplamento tecnológico.

Como resultado, as importações americanas de hardware de TI e eletrônicos de consumo chineses caíram 62% desde 2018, com países como México e Taiwan ganhando participação de mercado.

Consequências da Guerra na Ucrânia e Isolamento da Rússia

A invasão da Ucrânia em 2022 levou a sanções digitais contra a Rússia, além de uma fuga de cerca de 100.000 profissionais de TI, o que equivale a 10% da força de trabalho do setor no país (Atlantic Council, 2023). A Rússia, por sua vez, intensificou esforços de substituição de tecnologia estrangeira e desenvolveu sua própria “internet soberana”.

Impactos Econômicos e Tecnológicos

A fragmentação digital impõe desafios substanciais à economia global, à inovação tecnológica e à governança da internet. Ao substituir um modelo aberto e interoperável por sistemas fechados e regionalizados, o fenômeno compromete diretamente os fundamentos da economia digital e a fluidez das cadeias de valor globais.

Do ponto de vista econômico, a imposição de barreiras nacionais ao fluxo de dados — como leis de localização de dados (data localization) e restrições de transferência transfronteiriça — eleva os custos operacionais de empresas multinacionais, que precisam adaptar suas infraestruturas às exigências regulatórias específicas de cada jurisdição (OCDE, 2022). Esse aumento de complexidade reduz a eficiência operacional, limita a escala global de plataformas digitais e afeta negativamente a competitividade, sobretudo de empresas menores que não dispõem de recursos para se adequar a múltiplas legislações.

Além disso, a fragmentação compromete a conectividade tecnológica global, criando ambientes incompatíveis que dificultam a padronização e a adoção de tecnologias emergentes. Soluções baseadas em inteligência artificial, internet das coisas (IoT), blockchain e 5G dependem de ecossistemas amplos, interoperáveis e alimentados por dados massivos e diversos — características que são comprometidas quando o acesso e o compartilhamento de dados são segmentados por blocos geopolíticos.

Estudos da Organização Mundial do Comércio (WTO, 2024) estimam que um cenário de fragmentação digital acentuada poderá reduzir o crescimento do comércio digital global em até 12% até 2030, impactando negativamente economias interdependentes e retardando a digitalização em países em desenvolvimento. A exclusão de fornecedores e plataformas com base em critérios políticos ou de segurança nacional, como no caso da Huawei ou do TikTok, também gera externalidades negativas como a duplicação de infraestruturas tecnológicas e a fragmentação de padrões de cibersegurança.

Por fim, a fragmentação digital amplia a desigualdade global em acesso à tecnologia, dificultando a participação equitativa de países menos desenvolvidos na economia digital. A criação de “esferas tecnológicas rivais” pode levar a uma nova divisão global: não apenas econômica, mas também informacional, com implicações diretas para soberania digital, privacidade, cibersegurança e inovação.

Perspectivas e Propostas de Mitigação

A crescente fragmentação digital tem impulsionado iniciativas globais que buscam equilibrar a soberania digital com a necessidade de interoperabilidade e confiança nos fluxos de dados transfronteiriços. Entre as propostas mais relevantes, destacam-se:​

Fluxo de Dados com Confiança (DFFT)

A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) promove o conceito de “Data Free Flow with Trust” (DFFT), que visa facilitar os fluxos de dados internacionais ao mesmo tempo em que assegura a proteção da privacidade, segurança e direitos dos usuários. Essa abordagem busca harmonizar políticas nacionais divergentes e reduzir barreiras desnecessárias ao comércio digital, promovendo um ambiente digital global mais coeso. ( acesso completo a matéria no link https://www.oecd.org/en/topics/policy-issues/data-flows-and-governance.html?utm_source=chatgpt.com).

Iniciativas Multilaterais: JSI e DEPA

A Iniciativa Conjunta sobre Comércio Eletrônico (JSI) da Organização Mundial do Comércio (OMC) reúne 90 países em negociações para estabelecer regras comuns sobre fluxos de dados, localização de dados e proteção de consumidores. Embora haja divergências, especialmente entre países desenvolvidos e em desenvolvimento, a JSI representa um esforço significativo para mitigar a fragmentação digital. ​

Paralelamente, o Acordo de Parceria da Economia Digital (DEPA), firmado por Chile, Cingapura e Nova Zelândia, serve como modelo para acordos que equilibram a livre circulação de dados com a proteção da privacidade e segurança. O DEPA é visto como um “laboratório regulatório” que pode influenciar futuras negociações multilaterais. Fonte: Cambridge Core

Pacto Digital Global da ONU

A Organização das Nações Unidas propôs o “Global Digital Compact”, uma iniciativa que visa estabelecer princípios compartilhados para um ambiente digital inclusivo e seguro. O pacto aborda questões como conectividade universal, prevenção da fragmentação da internet, proteção de dados e direitos humanos online. Espera-se que esse esforço promova uma governança digital mais coordenada e equitativa.

Modelos Tecnológicos Inovadores

Diante dos desafios regulatórios, surgem propostas tecnológicas como o modelo de dados mantidos pelo usuário (“user-held data model”), que permite aos indivíduos armazenar e controlar seus dados localmente. Essa abordagem visa reduzir a necessidade de transferências internacionais de dados, minimizando riscos legais e fortalecendo a autonomia dos usuários.

Cooperação Regional: O Caso da ASEAN

A Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) está desenvolvendo um acordo regional de economia digital que busca harmonizar políticas sobre fluxos de dados, proteção de dados e regulamentação de inteligência artificial. Apesar das divergências internas, essa iniciativa representa um passo importante para reduzir a fragmentação digital na região. Fonte Hinrich Foundation

Conclusão

A fragmentação digital é um reflexo da nova ordem geopolítica, onde a tecnologia tornou-se um campo estratégico de poder. Seus impactos são amplos e profundos, exigindo ação coordenada entre governos, setor privado e academia para evitar um ciberespaço totalmente fragmentado, desigual e ineficiente.

Parece loucura? Para quem viveu o nascimento da internet como um espaço aberto e sem fronteiras, testemunhar essa rápida fragmentação digital pode parecer um sinal alarmante dos tempos sombrios que estão por vir.

Referências

  • Atlantic Council. (2023). Russia’s Digital Tech Isolationism. Retrieved from: https://www.atlanticcouncil.org
  • Chander, A., & Le, U. P. (2014). Breaking the Web: Data Localization vs. the Global Internet. Emory Law Journal, 64.
  • DeNardis, L. (2014). The Global War for Internet Governance. Yale University Press.
  • MIT Technology Review. (2022). The Splinternet is Growing. Retrieved from: https://www.technologyreview.com
  • OCDE. (2022). Digital Trade and Data Flows. OECD Digital Economy Papers, No. 319.
  • SCMP. (2022). US-China Trade War and the Collapse of IT Imports. Retrieved from: https://www.scmp.com
  • WTO. (2024). World Trade Outlook 2024. Retrieved from: https://www.wto.org

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Sobre o colunista

Alexandre Bastos é mestre em Administração de Empresas pela FGV, pós-graduado em Gestão da Inovação e Direito Digital pela FIA, pós-graduado em International Business pela BSP, MBA Executivo e pós-graduado em Gestão de Projetos pela Escola de Negócios do IMT, graduado em Sistemas de Informação na FIAP. Com experiência de 22 anos na área de Tecnologia, atualmente trabalha com inovação e consultoria para empresas nacionais e internacionais na Oonder Tecnologia, além de se dedicar a novos negócios e investimentos.